ENTREVISTA: Tudo Sobre Leitura (Ruth Rocha)
segunda-feira, 22 de março de 2010
A autora de clássicos da literatura
infantil diz que a infância não é tão feliz como se pensa e que tem uma
relação solidária com as crianças
Seu primeiro livro foi lançado
em 1976, a partir daí seus personagens passaram a povoar o imaginário de
milhares de crianças: a turma do Catapimba, o Reizinho Mandão, o famoso
Marcelo, com seu marmelo e seu martelo, transmitiram sempre uma
mensagem de esperança e amizade.
Representante de uma geração que
inovou a literatura infantil, Ruth Rocha bebeu nas tradições de
Monteiro Lobato e faz da modernidade do mestre influência cabal para
seus textos.
A seguir, a escritora infantil mais vendida no país fala de sua obra, de sua vida e, claro, de suas crianças queridas.
O que a motivou a escrever para crianças? Como foi o início da sua carreira?
A minha carreira começou com a
revista Recreio, na qual publiquei alguns textos a convite da editora
Abril. Meus primeiros livros, publicados em 1976, foram todos escritos a
partir de 1969 e alguns foram previamente editados pela revista.
Naquele período, publiquei treze livros em menos de um ano. Eles eram
vendidos em bancas e as tiragens eram muito grandes. Meu primeiro livro,
Palavras, Muitas Palavras, saiu com 35 mil exemplares, e Marcelo,
Martelo, Marmelo, 20 mil.
A linguagem usada na sua obra é muito peculiar. Como foi o processo de desenvolvimento?
Eu atribuo a linguagem que
utilizo a dois fatores. Um deles é o meu avô, nordestino de nascimento.
Quando criança, ele me contava muitas histórias da mesma maneira que os
autores nordestinos, ou seja, de uma forma muito simples, informal,
recheada de músicas, brincadeiras e piadas. O outro fator é que
trabalhei quinze anos como orientadora educacional, período em que tive
muito contato com crianças. A minha linguagem se prende a um sentimento
muito forte de solidariedade por elas. Além disso, tenho para mim que
embora as crianças passem por momentos de alegria, de riso e de graça,
em outros elas sofrem injustiças, infelicidade, impotência, tristeza,
castigos... Sinto que as crianças não são tão felizes como muitos
pensam. Daí nasceu uma grande cumplicidade entre mim e elas. Nesse
sentido, acredito que eu consiga falar com elas por meio dos meus
livros. Na verdade, escrevo como quem está falando, como quem está
contando histórias.
A partir do fim da
década de 1960, os temas abordados pela literatura infantil tornaram-se
contemporâneos. Os livros passaram a tratar, inclusive, de assuntos
controversos, como problemas familiares e desigualdade social. Por que
isso ocorreu?
Isso se explica porque grande
parte dos escritores da minha geração é leitora de Monteiro Lobato e
transporta para a obra aspectos dos quais ele já tratava. Assim, eu e
outros autores encaramos e transmitimos temas contemporâneos, que muitas
vezes são controversos, sem problemas. Outro dado: a exemplo de Lobato,
os livros desses autores são engraçados. Se você notar bem, nossas
personagens são mais próximas da Emília do que das "crianças
exemplares": elas reclamam, brigam, reivindicam. Lançamos mão, também,
de uma certa inclinação para o "feminismo". Lobato, apesar de eu não
acreditar que sua obra tenha tido essa propensão específica, criou um
matriarcado no Sítio. O único homem é Pedrinho, cuja posição, na obra, é
de paridade com Narizinho. A linguagem empregada por Lobato também nos
inspirou muito. Sua influência foi decisiva para o aparecimento dessa
nova literatura infantil, surgida no fim da década de 1960. Também não
se pode esquecer que a revista Recreio foi responsável por alavancar
muitos escritores. No fim dos anos 1960, por outro lado, enfrentávamos
uma ditadura renhida. O regime autoritário obrigava as pessoas a se
expressarem por metáforas. Nós todos, durante aquele período, falávamos
por metáfora. Havia apenas dois gêneros que puderam se expressar à
vontade: a história infantil e a música popular brasileira.
Em trinta anos de carreira, como a sua linguagem se adaptou às transformações da infância?
Eu acredito que ela não mudou.
As histórias que faziam sucesso há trinta anos continuam fazendo sucesso
até hoje. Veja o caso do Menino Maluquinho. Nossa linguagem era tão
moderna que não houve alteração. Tanto que a mesma escola literária
permanece atualmente, é claro que com novos autores.
Quais são os instrumentos utilizados por um escritor para transmitir um assunto controverso e delicado a uma criança?
Tudo o que é feito para a
criança demanda cuidado. Mas a mensagem não precisa ser transmitida de
forma tão explícita. O autor tem de ter um veículo, ou seja, uma
história boa, em que personagens se movimentem de modo verossímil. Feito
isso, ele pode tratar de qualquer tema. Você não pode falar de coisas
abstratas para uma criança, porque ela não vai entender (a criança
atinge o nível de abstração adulta com 12 ou 13 anos). Portanto, não se
pode falar de egoísmo. É preciso tratar o tema de forma concreta: "Quero
que você dê metade do chocolate para seu irmão". Essa mensagem ela
entende. Eu, por exemplo, acho que é muito mais difícil escrever para
adultos. Cada setor da literatura tem suas dificuldades e facilidades.
Como evitar que o livro infantil funcione como instrumento ideológico?
Cada escritor escreve de acordo com o que ele é. As pessoas escrevem coisas preconceituosas porque acreditam nelas.
Qual é a sua disciplina quando vai escrever um texto?
Minha casa é uma contínua
bagunça. É um entra-e-sai de gente, de netos, de amigos, de
jornalistas... Mas quando vem uma idéia boa na cabeça, eu sento e
escrevo.
Se a qualidade do texto
literário é boa, como a senhora analisa a qualidade gráfica e editorial
dos livros infantis? A importação é uma boa iniciativa?
Se o livro for bom, bem
traduzido, vamos importá-lo. Agora, se for ruim... O editor teria a
obrigação de triar as obras importadas. Não podemos privar a criança de
ler os bons livros estrangeiros. No panorama mundial, ingleses e
americanos se sobressaem da média: eles têm muitos bons autores. Já
outros países não têm tantos como nós. Na América Latina, a edição é
prejudicada porque a indústria gráfica é muito recente. Mas há um
problema: os livros estrangeiros normalmente são bem editados, têm capa
dura, papel excelente, e, às vezes, a edição de autores brasileiros fica
prejudicada. Os editores, a fim de não realizar um trabalho tão
sofisticado, alegam que os escritores vendem de qualquer jeito.
E o preço do livro?
Para as classes desprivilegiadas
é realmente caro. Agora, para a classe média... eu acho que não. Veja
só, gasta-se tanto dinheiro com bobagens... Parte da classe média tem
dinheiro para comprar brinquedos caríssimos, comer em restaurantes etc. O
dinheiro está aí, mas infelizmente não se compram livros.
O que falta para que as pessoas passem a comprar livros em vez de brinquedos?
Falta valorização. A sociedade
brasileira é pouco culta. O número de pessoas que realmente valoriza a
cultura, o conhecimento, a literatura é muito pequeno. Quer um exemplo?
Nas novelas, nunca aparece uma estante. Mostra-se, isso, sim, bar com
uísque. As novelas, que têm tanta penetração, quase nunca incentivam o
estudo, a leitura. Então, o que há é uma desvalorização daquilo que é
sério, do que é culto e inteligente.
Quais são as estratégias para a formação de um público leitor?
O nosso governo distribui mais
livros do que qualquer outro país do mundo, entre didáticos e
paradidáticos. Por outro lado, também já existem muitas instituições
privadas que estimulam a leitura. Eu sou presidente da associação
Instituto Brasil Leitor, que vai instalar cem bibliotecas, cada uma com
3.500 volumes, pela periferia de São Paulo. O projeto, financiado pelo
empresariado, prevê, também, a capacitação de bibliotecárias.
As crianças de 10 anos
cresceram familiarizadas com um instrumento novo: a Internet e o grande
desenvolvimento tecnológico. A tecnologia é uma rival da literatura
infantil?
Realmente, essas crianças têm
uma oportunidade a mais que as crianças da geração anterior. Mesmo
assim, eu não superestimo o mundo virtual. As pessoas ainda não o
compreendem bem. Eu acho que o livro de referência vai acabar, sim. Por
outro lado, o livro de ficção, o livro de prazer, o livro de literatura,
deve ser lido no suporte tradicional. Esse formato tem quinhentos anos e
ainda não se esgotou. Ninguém vai querer chegar em casa e ler um livro
no computador. Por outro lado, o computador permite que outras
linguagens sejam empregadas, mas elas também não substituem o livro.
Tais linguagens significam diversão, conhecimento, jogo. É outra coisa,
não é literatura. O Ziraldo tem uma frase de que eu gosto muito e que
sintetiza bem esse sentimento. Ele diz que no livro eletrônico não se
coloca uma violeta dentro.
A televisão é tida por
muitos como a grande vilã no desenvolvimento intelectual das crianças,
entre outros motivos porque ela as coloca em situações constrangedoras,
próprias de adultos. Qual é a sua opinião sobre a programação infantil
veiculada pela tevê?
Há programas bons e programas
ruins. Mas é preciso deixar claro que grande parte da programação para
crianças é de má qualidade. Eu costumo elogiar um programa desprezado
pela maioria das pessoas: o Chaves. Ele é excelente. O personagem é
feio, pobre, velho, mas as histórias são infantis; além disso, o texto é
excelente, engraçado. Nele, abordam-se assuntos de criança. Em outros
casos, às vezes, coloca-se a própria criança em uma situação humilhante,
parodiando os adultos. O excesso de estímulo não é adequado à
sensibilidade infantil. A criança precisa de um estímulo delicado: é
preciso falar baixinho com ela. Mas o vilão não é a televisão. Os pais
muitas vezes ligam a tevê em programas que eles gostam e expõem os
filhos a uma violência inadequada. Isso fere a sensibilidade infantil. É
claro que no processo de desenvolvimento da criança ela vai tomar
contato com tudo isso, mas não é necessário massacrá-la com tanta
sensualidade e violência. A televisão é um veículo maravilhoso para
educação, entretenimento, cultura, mas a programação, na média, é muito
ruim.
Quais são seus projetos atuais?
Estou planejando escrever dois
textos para adultos. Um é um livro literário, de citações comentadas, e o
outro é um livro sobre educação. Estou realizando, também, uma pesquisa
sobre as bandeiras para escrever um livro infantil: a história de um
menino que participa da bandeira do Bartolomeu de Gusmão. Além disso,
estou preparando um material didático, bonito, engraçado, com muitas
sugestões de atividades e jogos.
REFERÊNCIA: http://tudosobreleitura.blogspot.com.br/2010/03/entrevista-ruth-rocha.html
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